Um Maestro


 

Do nada, sentiu-se inspirado. Foi até o porão, revirou algumas caixas e encontrou uma antiga partitura musical para piano e orquestra, de um samba do Wilson das Neves e, melhor ainda, uma estante para partituras, esquecida ali se sabe lá por quem. Talvez alguma amiga de uma de suas filhas. Sacudiu a poeira, levou tudo para a sala e, carinhosamente repousou a partitura na estante, como sempre devia ser. Beleza.


Selecionou uma música no Spotify. A Sinfonia nº 1 de Gustav Mahler, a Titã, que adorava. Colocou o fone no ouvido, pegou a batuta, ou melhor,um pincel de paleta de pintura da mulher, olhou fixamente para a orquestra, digo, a coleção de bichos de pelúcia da filha mais nova, apertou o play e, aos primeiros acordes do primeiro movimento, levantou o braço, cerrou os olhos e começou a reger os seus quase 50 músicos.


As notas musicais, intrincadas, vinham de longe e provocavam uma sensação de quase arrebatamento. O que uma música bela, suave e envolvente não faz… Estava dentro de uma sala de concertos, na frente de uma plateia que ouvia sua sinfônica com um silêncio além do respeitoso. Naquele momento era só ele e Mahler, quase uma epifania. 


Quando se preparava para passar para o segundo movimento, ouviu um ruído diferente, dissonante, alto e completamente inoportuno. Um telefone tocando! Como assim, quem é o mal-educado que deixou o aparelho ligado no meio de um concerto? Virou-se furioso para o público e deu de cara com o quadro da Glorinha, uma paisagem rural, pendurada na parede. Como assim?


O toque continuava, insistente e só então caiu em si: ele mesmo esquecera de colocar o infeliz do celular em modo avião. Sem sequer olhar o display, atendeu ríspido:


 – o que foi?


 – é o senhor Carlos que está falando?


 – eu.


 – aqui é o Eduardo, da sua empresa telefônica favorita, para apresentar uma enorme vantagem para os nossos queridos clientes. O senhor teria um minuto?


 – não, não tenho, não quero ter e tenho raiva de quem tem. Vá pra…


Desligou desolado. Na sua frente uma estante com uma partitura de samba, um pincel de pintura, uns dez bichinhos de pelúcia e um smartphone ligado aguardavam suas ordens. Infelizmente o encanto havia passado. Sentiu-se ridículo, mais ridículo até que o Eduardo da telefônica, apenas um computador. Não, não dava mais para ficar ali. Foi até o banheiro, colocou short, camiseta, boné, calçou o tênis e saiu para dar uma corrida no parque próximo. No mínimo, ia esfriar a cabeça. No máximo, talvez conseguisse quebrar um recorde do Emil Zátopek, a “Locomotiva Humana”, um dos maiores corredores da história.


Já se sentia animado outra vez.


(2018)

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