Muros

 

Foto: Carlos Emerson Junior

I


Todo o santo dia passava em frente ao muro de hera. De quando em quando, um vira-latas amarelinho dormia encostado na vegetação, possivelmente para se proteger do calor.

O muro de hera sempre estava impecavelmente aparado. Nenhum galho quebrado ou ervas daninhas podiam ser notados, apesar de nunca ter visto um jardineiro por ali… se bem que podia ser mera coincidência…

O cachorro estava lá, no mesmo lugar, sonhando o que os cachorros sonham. Parou e pensou se devia fazer um afago, mas desistiu, deixa o bicho dormir em paz.

Cuidadosamente foi até o portão de madeira e tentou olhar para dentro por alguma fresta, sem sucesso. Conseguiu apenas vislumbrar alguns arbustos e um calçamento de pedras, possivelmente para carros.

Atravessou a rua e tentou enxergar acima do muro. O mais estranho é que, nesses anos todos, nunca tinha notado que não dava para ver o que havia lá dentro. Uma casa, com certeza, mas o muro muito alto não permitia sua visão.

Olhou para o relógio e percebeu que estava atrasado. Retomou sua caminhada para o centro da cidade e não pensou mais no assunto.

Dentro da casa, uma senhorinha vagarosamente sai da cozinha e se dirige para o portão. Abre e com cuidado deixa duas vasilhas de água fresca e comida perto do cachorro que dormia. Com algum interesse observa a satisfação rotineira do animal que, já acostumado com aquela atenção, bebeu e comeu com toda a tranquilidade.

Pensando no que teria chamado a atenção do rapaz que tanto espiou a casa, recolheu as vasilhas e voltou para trás do muro de hera.



II



Olhou as horas.... Já era dia. A cortina da janela, cerrada, não deixava o sol entrar. Estava sentada na frente do notebook desde, sei lá, onze da noite, não importa!

Esvaziou a caixa de e-mails, leu as notícias da manhã, terminou a revisão dos textos, anotou alguns esboços para crônicas e bocejou longamente. Fechou o Twitter, MSN, Orkutt e o Facebook. A noite fora proveitosa. Conversou muito e fez novas amizades. E, porque não, achava que tinha engrenado um namoro, mas isso só o tempo diria. Se não desse em nada, não tinha importância, fazia parte do jogo.

Sabia que já era hora, a manhã finalmente chegara. Levantou-se, deixou uns arquivos baixando no torrent, desligou o monitor e foi para cozinha comer alguma coisa. De alguma forma estava feliz… era bom quando tudo corria assim, sem sobressaltos, na mais completa normalidade!

A sirene do carro de bombeiros, parando bem embaixo do prédio, chamou sua atenção. E, ao contrário da rotina de sempre, abriu a janela e pode perceber alguém caído na calçada, imóvel. Estaria morto? Assustou-se com a ideia. Era um pavor recorrente que, volta e meia assombrava seus sonhos diurnos: morrer sozinha. Ou mesmo passar mal e não ter ninguém ao lado para ajudar.

No entanto, pensava, com o rumo que sua vida tomara, nunca esteve tão só como agora… Estava cercada de tecnologia e sempre em contato com alguém, seja pelo computador, celular, telefone, interfone, o que fosse. Acreditava nisso. Precisava acreditar que não estava só, nas longas noites em frente ao monitor, trabalhando ou não. Precisava ser frenética, mesmo que fosse na hora em que todos dormiam.

Sentiu necessidade de falar com alguém, qualquer um mas, a essa hora, quem já estaria acordado? Ligou o monitor e colocou uma nota sobre o incidente com o homem na calçada nas suas redes sociais. Deu outra espiada na caixa de mensagens e se sentiu melhor.

Vivia dentro de um muro, sabia disso e gostava. Não tinha porque mudar, ainda mais nessa altura da vida, já passada da meia idade. Seus amigos gostavam dela assim mesmo, estranha, simpática e feliz. Uma pessoa lunar, como gostava de brincar sobre si mesma.

Foi para o quarto dormir. Para grande parte das pessoas o dia mal começava; trancada naquele apartamento, como sempre, ela sonhava com os muros de sua casa de infância....



III



Acendeu um cigarro e ficou olhando a chuva, pela janela. Lentamente se dirigiu para a sua mesa de trabalho e começou a ler as fichas bem rapidamente, uma a uma.

Pelo visto, ia ser um dia tranquilo. Pegou o telefone e pediu para a recepção segurasse as ligações e mandasse entrar o primeiro nome da lista, uma entrevista curta e chata, como as de todos os dias, mas já estava acostumava e, quer saber? Sentia até falta! Um rapaz magro e de olhar triste entrou, desajeitado. Olharam-se rapidamente e ela pediu o cartãozinho com a senha e começou a ouvir sua história, quase a mesma de todos os outros.

Inclinou o corpo para trás, procurando mostrar interesse e de repente assustou-se pensando em si mesma, bem longe dali, quase que em outra vida! Que droga, tinha perdido uma boa parte do que o moço magro dizia. Mas não tinha importância, bastava carimbar sua ficha e encaminhá-lo para a outra seção, em qualquer dia e horário. Despachou o rapaz, pegou novamente o telefone e mandou a recepção aguardar um pouco. Levantou-se, abriu a porta da sala e se viu em um corredor vazio, com portas ao lado de portas, todas fechadas. Lentamente caminhou até o final, uma parede bem branca, lembrando um muro.

Parou e com uma caneta desenhou uma minúscula seta para baixo. Achou graça na arte mas, imediatamente inspirou profundamente e retornou para seu cubículo. Ainda tinha uma longa jornada pela frente. Pelo telefone mandou outra pessoa entrar.


IV

 

O vão central da ponte se aproximava rapidamente. Levou o carro para o lado direito reduzindo as marchas. Apesar do trânsito tranquilo, cuidadosamente olhou por cima do ombro para checar se não estava fechando ninguém.

Terceira, segunda e a velocidade quase caiu. Parou bem ao lado da mureta para evitar um acidente. Saiu do carro e, sem nem mesmo perceber, trancou as portas com a trava eletrônica.

Sentou-se na murada, tirou os sapatos, olhou para a câmera de segurança e chegou até a esboçar um sorriso. Levantou-se, olhou para o mar abaixo, uma imagem negra e distante e, sem dar tempo para nada, subiu na mureta e se jogou no ar.

Enquanto caia, teve um pensamento fugaz de que ia se esborrachar contra um muro, um muro de águas e nem sabia mais porquê. Que nada, consolou-se. A essa altura já estava muito além do muro…


(2010)












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