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Mostrando postagens de agosto, 2022

Sine Qua Non

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  © Carlos Emerson Junior O barulho da chuva caindo no telhado, escorrendo pelas correntes das calhas e o cheiro da terra molhada. O verde forte da vegetação encharcada. O Caledônia oculto nas nuvens escuras regando nossa cidade e todas as criaturas. O lusco-fusco entre o entardecer e o anoitecer. As cores das nuvens, alternando do branco ao laranja. As estrelas brilhando no céu limpo do inverno. A Lua Cheia sorrindo, iluminando a mata e ofuscando o pisca-pisca dos vaga-lumes que ainda resistem por aqui. A lareira acesa aquecendo corpos e corações. A revoada e os gritos das maritacas nas manhãs da Primavera. O chamado do Quero-quero no telhado da casa vizinha. O canto marcante de um Bem-te-vi. Uma Dália altiva em um jardim. Um muro de heras todo florido com Esponjinhas. A beleza exótica das Orquídeas. As duas semanas de floração das Cerejeiras. Ter passeado nesse mundão de Deus. Trabalhado com o que gosta, sabendo se reinventar. Velejar. Nadar. Conhecer e viver uma vida in

O estranho alerta da defesa civil

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© Henrique Pinheiro   Acordou. A manhã escura, chuvosa e fria não era exatamente um convite para sair da cama. Tentou, mentalmente, listar tudo o que tinha a fazer durante o dia mas a preguiça era muito forte, não conseguiu pensar em nada. Esticou o braço e puxou o celular. O LED que avisava que tinha recebido mensagens estava piscando. Apertou a tela e notou que havia apenas uma mensagem SMS. E era da Defesa Civil. Automaticamente abriu e mecanicamente leu o alerta: “ D efesa Civil Urgente : aproximação de uma anomalia de origem desconhecida poderá causar tempestades elétricas, tremores de terra, ondas gigantes e chuvas torrenciais na Cidade RJ, a partir dessa tarde. Procure imediatamente um abrigo. (18/5)” O coração disparou! Que merda de brincadeira era essa? Como assim, uma anomalia de origem desconhecida? Tornou a ler a mensagem. Notou que foi transmitida por volta das quatro da manhã, quando dormia que nem uma pedra. Daí para a frente, nem um recado a mais, até mesmo porq

A rádio russa

  Enquanto se servia do café requentado do jantar, aproveitou para ajustar o nível do som do velho rádio de ondas curtas. O dial digital acendeu e logo se ouviu o som de uma campainha ritmada, acompanhada do inevitável chiado característico dessas transmissões. Pois é, como obsessivamente fazia nos últimos dez anos, só sintonizava a enigmática UVB-76, lá da Rússia. Sempre que precisava escrever um artigo, crônica, texto, seja lá o que fosse, aquele sinal monótono era sua trilha sonora enquanto digitava. Depois de um certo tempo o cérebro se abstraia do som e as palavras vinham rapidamente, como se quisessem fugir daquela chateação. Achou graça do pensamento. Abriu o notebook e pela milésima vez conferiu na Wikipédia: "UVB-76 (também UZB-76, S28 ou MDZhB) é uma estação de rádio de ondas curtas, que transmite um sinal contínuo na frequência 4.625 kHz, descoberta em 1982. Algumas vezes o sinal de alarme é interrompido por uma transmissão de voz em russo. O objetivo desta esta

Pequenas distrações

  Atire a primeira pedra: quem nunca foi para o trabalho com o controle remoto da TV ou o telefone sem fio na bolsa? Ou colocou o leite no copo e jogou a caixa de leite, cheiinha, na lata de lixo? Se arrumou toda para um evento social e se mandou com as sandálias havaianas? Pôs a água para ferver, esqueceu da vida e a água evaporou. Repetiu a operação e esqueceu novamente! Saiu de casa correndo, debaixo da maior chuva e não conseguiu abrir a porta do carro. Viu que pegou a chave do marido, voltou para casa e retornou com a chave do carro do filho. E tome chuva! Foi fazer o exercício diário na praia com a camiseta do lado do avesso. Preparou um café na cafeteira italiana sem colocar a água no recipiente próprio. E pior, no supermercado, ao invés do açúcar, comprou sabão em pó. Saiu de carro e voltou de ônibus. Duas vezes. Revirou a casa inteira atrás do celular, que só foi localizado na manhã seguinte, dentro da geladeira. Entrou na fila do banco: quando chegou no caixa desc

Sonhadores

  Era um sonhador incorrigível. Desde a infância. Aprendia com facilidade, o problema era conseguir se concentrar nas fórmulas matemáticas e regras ortográficas. Adorava História mas sua cabeça viajava tanto que acabava perdido em épocas e personagens distantes. Pais e professores preocupavam-se. Potencial ele tinha, desde que não divagasse.  Em pouco tempo ele já havia sido mercenário em Angola, baixista de um grupo de rock, astronauta de uma das missões Gemini, piloto de corridas, inventor da máquina de movimento perpétuo, descobridor da cura do câncer, escritor maldito, ator de Hollywood, compositor da MPB, pianista clássico, motorista de caminhão e, principalmente, amante de todas as mulheres do mundo! Espião com licença para matar, jornalista investigativo, explorador profissional, descobridor de uma nova espécie de mamíferos na Ásia, médico voluntário no Sudão, pintor de arte moderna, maquinista de trem (bala, de preferência), jogador de futebol, imediato de destróier, ve

Voo noturno

  "É claro que posso contar o que aconteceu ontem à noite, senhor. Saímos da empresa para o Santos Dumont por volta das oito da noite. Eu, o motorista Joel e, é claro, o Dr. Alfonso e a secretária, Dona Morena. O chefe ia para uma reunião em São Paulo e, curiosamente, resolveu viajar pela ponte aérea. Sim? Não, ele sempre vai de jatinho mas ontem, sei lá, disse que estava com vontade de ver gente e dispensou a aeronave e o piloto. Comprei sua passagem no balcão da empresa aérea para o voo das nove da noite. Enquanto isso o Dr. Alfonso e D. Morena tomavam um café. Juntei-me a eles e avisei o pessoal para mandar um carro em Congonhas. Por volta das oito e trinta o chefe foi para o embarque, esperamos o avião decolar e voltamos para o escritório. D. Morena foi para casa e eu fiquei por lá mesmo, aguardando notícias. Eram umas dez e meia quando o Rubão me ligou, nervoso, querendo saber porque o Dr. Alfonso não tinha viajado. Como assim, bebeu, Rubão? Imediatamente liguei para o celula