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Água

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“A água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba.” (Guimarães Rosa) Eu era criança, talvez com uns oito ou nove anos. Morava com meus pais e minha irmã em Copacabana, no Rio, a uma quadra da praia. Um bom apartamento, um bairro grande mas ainda não superlotado, transporte e comércio na porta, escolas públicas com vagas. O Rio ainda era o Distrito Federal, a capital do Brasil. Infelizmente não tinha água…. Boa parte de minha infância foi profundamente marcada pela “rotina da falta d’água”: a banheira cheia de água para uso da casa, banho de “cuia” (expressão mato-grossense para aquele banho sem-vergonha usando uma bacia e um baldinho), evitar sujeira, não ir à praia, não desperdiçar o precioso líquido em hipótese alguma. No auge da crise, meu pai, desesperado, tomou uma atitude radical: comprou e mandou instalar uma enorme caixa d’água dentro do apartamento, ocupando um espaço livre na saída da cozinha. Quem entrasse em casa, pela entrada de serviç

Falando de cartas

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“Acreditem, havia vida antes do email (e do whatsapp)” Você ainda recebe alguma carta? Não, não estou falando das inevitáveis contas das concessionárias de serviços como luz, gás ou telefone. Ou as propagandas e convites para assinar a revista A, o jornal B e o canal de tevê C. Muito menos intimações judiciais, advertências do condomínio ou boletos de todos os valores. Refiro-me aquelas escritas à mão livre, pessoais, intransferíveis e perfumadas. Cartas eram a maneira mais fácil e talvez segura das pessoas se comunicarem, antes do advento do telegrama (lembram?), email e whatsapp, exatamente nessa ordem. Historiadores datam sua origem em 3.200 A.C., na Mesopotâmia. Sua importância era tal que, por exemplo, o mundo só tomou ciência da descoberta do Brasil quando o escrivão Pero Vaz de Caminha mandou sua famosa carta a El-Rei Dom Manuel, de Portugal, em 1º de maio de 1500. Cartas podem ser expressas, diplomáticas, comerciais, sociais, testamento, convites, despedidas, amor, ódio,

Casa do João de Barro

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  Foto: Carlos Emerson Junior E não é que agora todo mundo só quer morar em condomínios? E estou me referindo a todo mundo, inclusive o simpático João de Barro, engenheiro, projetista e construtor incansável, que procura o melhor lugar para abrigar sua família. Seu grande problema é o mesmo de todos nós, segurança. Uma casa tem que ser forte para aguentar as intempéries, protegida contra predadores (no nosso caso a bandidagem mesmo), espaçosa o suficiente para acolher todo mundo. Vizinhos? Sempre é bom, claro, mas é preciso saber conviver numa coletividade com educação, civilidade e respeito. Não sei se esses conceitos cabem num “Fornarius Rufus” (o nome científico do nosso construtor) mas como nunca vi brigas em cima de postes de luz, acredito que as aves são de paz. Aliás, aquela história que a gente ouve desde criança que o João de Barro faz sua casa com a abertura oposta do vento da chuva nunca foi comprovada. Tai, mesmo assim, ainda acho que eles são grandes engenheiros. PS: a fot

Domingo na praia

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Foto: Carlos Emerson Junior De repente o mar deixou uma bola azul aos meus pés. Esperei o grito de alguma criança reivindicando sua posse. Que nada, ninguém se importou ou sequer notou. A bola rolou um pouco na areia molhada e parou, aguardando que uma outra onda a levasse para outros destinos. Parei a caminhada. Um pouco mais além uma mulher reclamava de outra que estava com um cachorro dentro do mar. O discurso era tão feroz que, apesar de saber que ela tinha toda a razão – é proibido e basta chamar um guarda para tirar o animal – perdi toda a vontade de manifestar solidariedade ou simpatia. Olhei de novo para a bola azul, indiferente e solitária.  Lembrei que ali mesmo aprendi a nadar, ainda menino. As aulas ensinavam o nado de sobrevivência, permitindo que fossemos bem longe, sem cansar. Aprendi a respeitar as águas. O mar é poderoso e com ele não se brinca. O velho instrutor, um oficial aposentado da marinha, há muito se foi. E já faz tempo que não nado no mar. Cheguei bem perto d

A morte não é nada

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Santo Agostinho “A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do Caminho. Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, eu continuarei sendo. Me dêem o nome que vocês sempre me deram, falem comigo como vocês sempre fizeram. Vocês continuam vivendo no mundo das criaturas, eu estou vivendo no mundo do Criador. Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir daquilo que nos fazia rir juntos. Rezem, sorriam, pensem em mim. Rezem por mim. "Que meu nome seja pronunciado como sempre foi, sem ênfase de nenhum tipo. Sem nenhum traço de sombra ou tristeza. A vida significa tudo o que ela sempre significou, o fio não foi cortado. Porque eu estaria fora de seus pensamentos, agora que estou apenas fora de suas vistas? Eu não estou longe, apenas estou do outro lado do Caminho… Você que aí ficou, siga em frente, a vida continua, linda e bela como sempre foi.”

Meu pai

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“ Tudo o que acontece é natural – inclusive o sobrenatural.”   ( Mario Quintana )   Sai do bazar e “atropelei” um senhor que vinha cabisbaixo pela calçada, rente às lojas. Ninguém caiu, ninguém se machucou. Perguntei se estava tudo bem, se precisava de alguma ajuda. Ele se recompôs, pediu desculpas pela distração, me olhou profundamente nos olhos, deu um até logo e seguiu seu caminho. Chocado, não consegui sair dali: por algum motivo fiquei com a sensação de que quase tinha derrubado no chão o meu falecido pai. Olhei para o lado esquerdo da rua e lá longe ia ele, devagar, com as mãos no bolso e um cigarro no canto da boca. Meu Deus, um cigarro na boca? Quem ainda fazia isso? Não era possível, Papai faleceu há cinquenta e três anos e hoje ele teria mais de cem anos de idade. E como assim, ele não me reconheceu? Se bem que não tem como, afinal, eu tinha apenas 13 anos. O que ele viu, a pessoa que trombou com ele, foi um senhor meio calvo, com os cabelos e barba brancos, óculos com lent

Filó

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Foto: Carlos Emerson Junior   A cachorra estava só na dela. Deitada no sofá, ignorava solenemente a família reunida na mesa de jantar. Bocejava de vez em quando e com os olhos semicerrados, deixava o sono decorrente da noitinha tomar conta do corpo. No entanto, o cheiro de comida... nossa, que delícia. Levantou ligeiramente a cabeça para avaliar o que acontecia. Caramba, os quatro bípedes da casa estavam realmente devorando um bife! Avaliou a situação e percebeu que não adiantava pedir, iam lhe jogar um pedacinho bem mixuruca ou pior, ração para cachorros! Virou o corpo na direção da mesa, se espreguiçou e lentamente caminhou para junto da humana que considerava sua dona. Percebendo que ela segurava um pedaço de carne em uma das mãos e deixou um naco no prato, correu e rápida como um raio, saltou em seu colo, abocanhou inteirinho o filé e saiu lépida para devorar a delícia. Ah, os prazeres de um bom prato!  Mas Filó, em sua gula, acabou se esquecendo completamente do “não”, um comando